JESUS CRISTO NO ANTIGO TESTAMENTO?
A
teologia cristã tradicional, como praticada por católicos e protestantes,
ensina que as promessas do Antigo Testamento e as expectativas contidas no
mesmo se cumprem no Novo Testamento. De acordo com essa fórmula teológica, por
exemplo, Jesus seria o messias prometido nos textos do AT, embora os judeus não
concordem com isso.
Analisando
de forma mais sensata e sóbria a história da igreja e a formação das doutrinas
e dogmas cristãos percebemos que esse equívoco custou caro ao cristianismo e
gerou muita confusão. Ler o AT com as lentes cristãs neotestamentárias produz
equívocos teológicos quase incorrigíveis.
Levar
para a leitura de qualquer texto os nossos pressupostos e preconceitos, bem
como as nossas pretensões teológicas infundadas, só produzem anomalias e erros
crassos. O Antigo Testamento precisa ser lido como produção judaica e não como
coletânea de histórias que aponta para algo que lhe transcende (Cristo).
Por
exemplo, em qualquer igreja evangélica ensina-se através de sermões e aulas de
escola bíblica dominical que o texto encontrado no capítulo 53 do livro
vetero-testamentário do profeta Isaías se refere aos sofrimentos de Cristo. Eis
aí um flagrante exemplo de exegese bíblica cristã mal sucedida!
É
plausível comparar os sofrimentos de qualquer profeta incompreendido com os
próprios infortúnios de Cristo, mas vê-lo onde ele não está não passa de
fanatismo religioso. Jesus não é citado nem direta nem indiretamente no AT e
nada do que possamos dizer mudará esse fato.
O
autor do livro de Isaías, que provavelmente viveu entre 765 e 681 A.C., como
judeu que presenciou a destruição de Samaria pelos Assírios, não tinha em mente
Jesus Cristo quando produziu o livro em questão. Essa leitura posterior cristã
que afirma que Isaías (consciente ou não) falava de Jesus Cristo não faz
sentido.
Não
faz sentido por dois motivos: Em primeiro lugar, a ideia de “servo sofredor”
contida no capítulo 53 de Isaías que descreve o mesmo como alguém em quem não
se via beleza alguma e a quem ninguém deu crédito é totalmente diferente da ideia
cristã posterior de “servo sofredor” produzida pela exegese cristã.
Para
o cristianismo posterior, que releu os textos de Isaías, o “servo sofredor”
identifica-se também com o messias para os cristãos (Jesus Cristo). Entretanto,
para o judaísmo, o messias sofredor não é o messias definitivo, mas apenas
alguém que prepara o caminho para o messias final que restaurará todas as
coisas no plano físico e espiritual.
De
acordo com a tradição exegética rabínica judaica, o messias sofredor não era o
Messias, filho de Davi, mas apenas um precursor. Os judeus não aceitariam em
hipótese alguma um messias que não acabasse com a guerra e a opressão, como foi
o caso de Jesus Cristo que, apesar dos seus padecimentos, não transformou a
ordem opressiva do mundo (Byron Sherwin).
Portanto,
quando o judaísmo (inclusive o autor do livro de Isaías) fala em um “servo
sofredor” está se referindo a uma espécie de messias que com os seus sofrimentos
abre o caminho para o Messias final, filho de Davi. Acredito que o cristianismo
não estaria disposto a relegar Jesus Cristo a esta segunda categoria de messias
não acham?
Outra
interpretação possível do texto de Isaías 53, aliás, uma interpretação com a
qual simpatizo, é aquela que supõe que Isaías no capítulo em questão do seu
livro estava se referindo a ele mesmo e aos seus sofrimentos decorrentes da
incompreensão dos seus contemporâneos. Isso mesmo, Isaías falava de si e não de
outro!
Aliás,
ao que tudo indica, é essa a primeira impressão que qualquer pessoa tem ao ler
o capítulo 53 do livro de Isaías. Foi essa a interpretação feita pelo eunuco
citado no livro dos Atos dos apóstolos que voltava de Jerusalém depois de ter
ido assistir as cerimônias no templo (Atos 8:34).
Talvez
você esteja pensando agora: “o eunuco e também o autor desse blog não
entenderam o sentido do texto porque não são convertidos”. Essa afirmação
pressupõe que alguém para entender a Bíblia precisa ser “iluminado” depois de
passar por alguma espécie de conversão que a igreja atribui sabe-se lá a quê.
Ouso
dizer que qualquer pessoa que se propuser a ler a Bíblia de coração aberto e
isento de preconceitos vai ver neste texto exatamente o que o eunuco (e o autor
do blog também) viu nele, ou seja, que Isaías falava de si. Quanto a não ser
convertido, eu pergunto: convertido a quê? As doutrinas da igreja? Aos sermões
do pastor?
Qualquer
um que lesse esse texto não poderia ver outra coisa nele senão que Isaías
falava de si mesmo. Se você for sincero, porém, admitirá que só passou a ver
nesse texto o servo sofredor (na visão cristã = Jesus Cristo), depois que foi
instruído dessa forma dentro da igreja.
Naturalmente
o versículo 35 (Atos 8:35) que diz que o evangelista Felipe a partir dessa
parte das escrituras anunciou a Jesus é um acréscimo posterior ao texto do
livro de Atos, uma vez que essa interpretação não era corrente no meio judaico
onde nasceu o cristianismo. Pelo visto, interpretações cristológicas do AT não é
novidade!
Endossa
o que estou dizendo o fato de que aquele que escreve o capítulo 53 do livro de
Isaías começa o texto perguntando retoricamente: “Quem deu crédito a nossa pregação? E a quem se manifestou o braço do
Senhor?” Eis uma típica indagação de um profeta desiludido que parece
entristecido por não ter sido escutado por aqueles a quem foi enviado.
Isaías
está triste, decepcionado, achando que trabalhou em vão e não foi compreendido
por um povo obstinado e entorpecido pelo seu próprio egoísmo. Por isso continua
o profeta: “era desprezado e o mais
indigno entre os homens” (Isaías 53:3); é patente a decepção do profeta diante
do povo que não o escuta e o despreza.
Em
suma: a exegese cristã feita pela igreja dos textos do Antigo Testamento
produziram muitos equívocos, entre eles essa obcessão por cristianizar todas as
coisas e ver Cristo onde ele não está, ou seja, no Antigo Testamento. Há
inclusive quem cometa a leviandade de afirmar que a noiva citada no livro de Cantares
é a própria igreja cristã!
O
Novo Testamento tem vida própria e não precisa do Antigo Testamento para ter
valor, fato que até mesmo os escritores dos evangelhos, como bons judeus,
ignoraram e que a igreja atual continua ignorando. A leitura cristológica do AT
só tem servido para criar mitos que só serão desfeitos
com muita dificuldade!
André
Pessoa
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