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sábado, 26 de junho de 2010

PÓS-DILÚVIO



PÓS-DILÚVIO



O garoto de aspecto triste e vestindo uma camisa que o engolia acendeu a fogueira assim que caiu a noite. Não foi difícil encontrar entre os destroços trazidos pela cheia a madeira ainda molhada para construir aquele pálido símbolo junino.
Para a base da fogueira usou duas grossas linhas de madeira que pareciam ter sustentado algum telhado outrora. No meio da fogueira colocou os restos de um irreconhecível sofá amarelado e quase sem espuma.
Quando acendeu o fogo com alguns farrapos de roupa velha deixados para trás por alguém que fugiu apressado, imaginou que pudesse queimar também as lembranças da tragédia. Isso não foi possível, a memória é como um vídeo tape repetindo a toda hora as cenas que queremos esquecer.
Assim que as chamas se fizeram ver e subiram em direção ao céu como um clamor que não é ouvido, outras pessoas se aproximaram para se aquecer. Neste mesmo momento uma criança chorou no abrigo montado pela guarda nacional e o seu choro triste se fez ouvir ao longe a medida que cortava a noite e se confundia com o coaxar dos sapos que estavam em toda parte.
“São João não está aqui”, pensou a criança em seu íntimo. “Deus não está aqui, nunca existiu”. Corrigiu-se silenciosamente o menino enquanto lacrimejava ao olhar para o fogo cor de laranja que crepitava a sua frente consumindo o resto de vida que ainda existia ali.
No largo, que agora era uma grande lagoa lamacenta, um carro jazia virado com as rodas para cima. É o mundo de cabeça para baixo, é a vida pelo avesso, são as entranhas da existência se fazendo ver, é a face verdadeira do mundo que as festas encobrem, é a fragilidade humana revelada, é o mundo se mostrando como é: feio e caótico.
Na praça, a matriz permanece fechada. Os padres já se foram e até os santos desceram correndo de cima dos altares e fugiram em pequenas embarcações para não se afogarem como os simples mortais. A tragédia mata a fé; afoga o sobrenatural, sepulta Deus na lama.
Quando amanheceu o dia, depois da noite de São João, só se via as cinzas da fogueira e das pessoas misturadas com lama e os pássaros mudos nos galhos das poucas árvores que a correnteza não levou. O silêncio, porém, foi quebrado pela voz altaneira de um homem de paletó que se aproximou cercado de assessores.
“Chegaram”, disse o garoto entusiasmado. Depois correu para mais perto e ouviu o homem bem barbeado e perfumado dizer que enviaria ajuda e cobertores. O garoto respirou aliviado e sorriu, mas nem imaginou que estávamos em ano de eleição.

André Pessoa

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