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sábado, 31 de outubro de 2009

MELQUIZEDEQUES



MELQUIZEDEQUES


Pela janela do carro vejo a multidão anônima, apressada, olhando sempre o relógio, tropeçando em si mesma.
Esses enxames humanos disputam cada espaço, enchem cada quadrante, tocam-se ligeiramente quando se cruzam em sentidos opostos indo não sei pra onde.
Sozinhos são gota de água, mas juntos são cachoeira, diria Julião; cachoeira que estronda na pedra, na pedra da cidade, no asfalto, polindo-o, gastando-o e se gastando.
Cada um deles é parte do todo.

São dínamos humanos gerando a energia que agora captam os meus sentidos, que move o mundo que compartilham.
Não estão apenas construindo uma cidade ou um país, estão tecendo uma teia psíquica, deixando marcas por onde passam, em tudo que tocam, compondo uma grande ilusão.
Todas as coisas, os objetos, as ruas, estão impregnados de vida, de gente, de dor, de possibilidades, lembra-me Walt Whitman.

Veja bem no que você toca, pode está cheio de seres!
As pessoas se dissolvem nas cosias, sobretudo nas que mais desejam. As coisas captam as pessoas, sobretudo as mais vulneráveis. É a grande mistura extravagante de tudo que existe.
Na esquina ainda ouço o sussurro do casal que se abraçava agora a pouco e o espanto do homem que foi assaltado no mesmo lugar dias atrás. Tudo é diferente, embora nada tenha mudado.
Meu coração ama e ao mesmo tempo repudia essa multidão onde as identidades se dissolvem, onde juízes e limpadores de rua são o mesmo e a mesma coisa. É que eles às vezes me levam pra onde não quero ir!
Todo dia fico atordoado ao contemplar essa geração de Melquizedeques, essas pessoas sem genealogia que aparecem e somem na história repentinamente como se nunca tivessem existido. Será que existem ou são só espectros, meras aparições?
Eles estão sempre correndo, ninguém sabe pra onde, mas ao correrem me arrastam, espalham-me, me fazem escorrer junto com eles como sangue, o sangue do mundo derramado nos muitos crimes que estão acontecendo agora mesmo.

André Pessoa

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