DO VALOR DA ÁGUA SUJA

DO VALOR DA ÁGUA SUJA


Na manhã em que soube que não seria contratado, não de imediato, pelo colégio onde concorria a uma vaga para professor de história e que certamente mudaria os rumos da minha vida financeira, estive, por alguns minutos, contemplando a água suja de um canal cheio de dejetos que passava em frente a minha casa.
Da varanda do meu apartamento, num subúrbio da cidade do Recife, via paciente e apaticamente o lixo ser carregado por uma torrente de água que descia violentamente pelo estreito canal depois de uma breve, mas forte, chuva de verão.
Aquelas águas sujas, que traziam em suas correntes ratos mortos e apodrecidos, papel higiênico usado em estado de decomposição, sacos plásticos amarelados, peças de vestuário infantil amarrotadas, sapatos furados e absorventes usados, me falaram em alto e bom som naquele dia.
Acreditem, o lixo também fala! A água suja tem o seu valor. O canal em frente a minha casa é um texto vivo, funesto e silencioso, escrito sobre a condição humana. É a voz da podridão ecoando nos cantos esquecidos da cidade, é a sinfonia da realidade tocada por instrumentos que quase ninguém sabe escutar.
A sujeira que flutuava levada pela corrente diante dos meus olhos, falava sobre o homem, sobre o descaso das autoridades - sempre tão convincentes em seus pronunciamentos públicos tão cheios de demagogia e tão vazios de verdade - falava sobre os tronos, revelava a natureza das potestades, trazia à luz as inconsistências daqueles que deveriam guardar e não guardam.
O lixo que bóia no canal me fala das muitas promessas não cumpridas, do descaso e do desrespeito pelo outro. Ele fala dos políticos, dos “redentores da humanidade”, daqueles que se apresentam como messias e agem como diabos, como salteadores inescrupulosos. É também sobre a política que penso agora; o canal poluído me faz lembrá-la.
Mas não penso apenas na culpa alheia, na que emana dos gabinetes. Não penso apenas no povo enganado, penso também no povo culpado, mal educado, que entope galerias, polui canais, infecta a cidade, fere a terra, fere a si mesmo, compõe, sem que perceba, os versos tristes de uma elegia à sua própria morte.
A multidão não é apenas vítima, também é cúmplice. O lixo e a água suja também falam dos valores e princípios do povo que os produz. Os homens são sujos, em quase todos os sentidos, por fora e por dentro. Nem com todo o sabão do mundo poderiam ser lavados.
Entretanto, apesar do cheiro ruim exalado pelos animais em putrefação, a água suja também me ensina sobre a vida. Ela me diz que eu não posso parar de lutar por um mundo melhor, por uma vida mais digna para mim e para os que comigo caminham nas veredas sinuosas que cortam a existência.
A água suja é o meu combustível, ela me põe em movimento. Todos os dias quando acordo e sinto o seu mau odor, e vislumbro o seu mau aspecto, sinto-me fortalecido para lutar por algo melhor. A água suja é a minha referência, fala-me do lugar medonho que pretendo ver mudar.
A água suja me motiva a ler mais livros, a adquirir mais conhecimento, a instruir os alienados, a combater os perversos e buscar a Deus. De fato, sem a água suja e sem o lixo boiando diante dos meus olhos eu não seria nada. Ninguém é nada quando não tem o que conquistar nem contra o que lutar.
Obrigado Senhor pela água suja! Bem-aventurados os que com ela aprendem. Sagrados são os ratos e o lixo que nela bóia. Contudo, bondoso pai, ensina-nos a não nos conformar com ela, a não sorvê-la nem chama-la de irmã, mas a sonhar sempre com o dia em que a veremos translúcida, cristalina, como certamente foi um dia quando homens não havia para poluí-la.

André Pessoa