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quarta-feira, 29 de abril de 2009

SE EU QUISER FALAR COM DEUS




SE EU QUISER FALAR COM DEUS
(comentário da música de mesmo título de Gilberto Gil)


Desde que o primeiro homem veio à existência, tomou consciência de si mesmo e descobriu que era um ser autotranscendente (que precisa ir além de si mesmo), a sua procura por Deus não mais cessou.
Voltando no tempo e estudando as primeiras civilizações que surgiram no mundo antigo e os mais primitivos e remotos ritos percebemos essa busca incessante pelo divino. Com os homens nasceu também a religião.
Gilberto Gil, gênio poético inconteste consagrado pela crítica musical e literária, em sua música “Se eu quiser falar com Deus”, retoma um dos temas mais importantes e férteis do pensamento humano: a relação com o transcendente.
De fato, falar com Deus não é nada fácil. Não o conseguimos ver, tocar, nem muito menos apalpar. Os seres humanos sempre foram assim: precisam do contato físico, do toque, dos sentidos para poder acreditar em algo (Tomé que o diga!).
Entretanto, falar com Deus, em minha opinião, é mais uma atividade do espírito do que dos sentidos. Os nossos sentidos enganam e não podemos confiar inteiramente neles, sobretudo, se está em jogo o contato com o criador do universo.
Gilberto Gil capta essa nuance da relação com o transcendente de forma fenomenal ao dizer que para falar com Deus é preciso “subir aos céus sem cordas pra segurar”. Isso porque a comunicação com Deus, pneumática que é, está no domínio do espiritual, do abstrato, e não do meramente material, do físico.
A bela poesia de Gil exprime o fato de que a relação do homem com Deus passa, na maioria das abordagens, pelo fazer algo. Por esse motivo a expressão “tenho que”, sempre posterior a “se eu quiser falar com Deus”, aparece 17 vezes como condição para o contato com o altíssimo.
As pessoas sempre acreditaram e acreditam que precisam fazer coisas para que o contato com Deus seja estabelecido. Embora isso não seja de todo uma inverdade, eu diria que é a ordem das coisas que aqui está invertida.
Não será fazendo coisas, cumprindo meras regras, que estabeleceremos contato com Deus, mas estabelecida à relação com Deus passaremos a repensar toda a nossa existência e redirecionar as nossas atitudes.
Para falar com Deus precisamos nos dispor a ouvi-lo, diz a letra da canção nas entrelinhas (“tenho que calar a voz”). Deus não fala conosco, penso eu, porque nós não paramos para ouvi-lo; nossos desejos são maiores que ele, nossas vozes encobrem a sua.
Pra falar com Deus é preciso livrar-se do peso. Do peso daquilo que nos oprime, que nos faz caminhar lento, que nos faz estar cansados antes mesmo que o dia de trabalho tenha começado (“tenho que encontrar a paz”).
Como poderíamos falar com Deus se não desatássemos os “nós dos sapatos, das gravatas”?. Mas as coisas que nos pressionam e angustiam nem sempre são palpáveis, visíveis como nós de sapatos ou de gravatas apertadas.
Gil capta isso ao falar que é preciso folgar também os “nós dos desejos” e “dos receios”. Os desejos descontrolados de fato nos fazem sucumbir e nos impedem de entrar em contato com Deus (Foi o poeta inglês do século XVIII Willian Blake quem disse: “imerge nas correntes aquele que se delicia com as águas”).
O desejo descontrolado é pai do roubo, da avareza, da inveja e da prostituição. Somos apanhados e acorrentados pelas coisas que mais desejamos e que nos parecem mais deliciosas e apetecíveis.
Quanto aos medos são paralisantes, nos fazem por em dúvida o futuro, as utopias, a própria existência de Deus. De fato, como lembra Gil, pra falar com Deus é preciso “desatar os nós dos receios”, do medo.
Acreditamos também que para falar com Deus é preciso ser resignado, saber suportar pacientemente as aflições, “aceitar a dor”, “comer o pão que o diabo amassou”. Aqui Gil retoma o tema do ascetismo que permeia a história de todas as religiões do mundo possuidoras que são de preceitos éticos bem definidos.
A última estrofe da música do Gil, em minha opinião, é a mais genial de todas. É que, sendo gênio como é (apesar da vida política não muito apreciada pelos fãs), Gil termina sua canção de forma inusitada, inesperada e brilhante.
“Se eu quiser falar com Deus tenho que me aventurar... tenho que dizer adeus, dar as costas caminhar decidido, pela estrada...”.
Aos que me perguntam onde está Deus eu gosto de responder: “ele está na próxima esquina, na estrada, se revela na próxima curva, por isso é preciso dar um passo adiante, ir em frente”.
A conclusão de Gil parece sobrecarregada de uma tristeza poética e resignada, senão desesperadora. É que mesmo depois de ter se aventurado, de ter “dado as costas”, de ter “caminhado decidido pela estrada”, o fim dela só leva ao nada.
A intensidade do sentimento que encheu o coração do compositor no momento da conclusão da música só pôde ser transmitida repetindo uma após outra vez a palavra nada, nada, nada...
É que existe emoções que são tão intensas que não podem ser captadas pelo discurso lógico nem por meras fórmulas textuais . O grande compositor é aquele que, como Gil, enche as palavras de significado e de emoção como fez repetindo o nada, nada, nada...
Mas a música não termina no “nada” e sim no “nada do que eu pensava encontrar”. Triste e lírico fim de uma procura, não foi possível encontrar aquilo que se procurou (Deus), pelo menos não da forma que se acreditava ser possível achá-lo.
Quando estudei teologia aprendi nos livros de dogmática cristã que existe uma diferença qualitativa entre Deus e o homem. Por isso mesmo, repetia Karl Barth, teólogo suíço do século XIX, “Deus é o totalmente outro”.
Tudo o que dizemos sobre Deus não passa de mera analogia, conjecturas muitas vezes desprovidas de verdade. Deus é fugidio, não está onde o procuramos, por isso mesmo a estrada, em muitos casos, vai dar em “nada do que eu pensava encontrar”.
Contudo, preciso dizê-los, aproveitando a inspiração que foi proporcionada por Gil, cada vez mais que procuro me aproximar de Deus ou leio livros que dizem respeito a sua existência, concluo que não devo fazê-lo olhando apenas para o céu (esse lugar ao qual precisamos subir sem cordas pra segurar).
Concluo a cada dia que se passa que se de fato eu quiser falar com Deus terei que procura-lo na terra, no mundo e não apenas no alto. Quando me certifico disso, algumas vezes pelas vias mais difíceis, o meu olhar se volta para o passado e para um lugar pouco atraente no qual andou um homem queimado pelo sol e que a algum tempo atrás já me ensinou a “falar com Deus”.

André Pessoa

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