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quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A INVENÇÃO DO ESPELHO



A INVENÇÃO DO ESPELHO


Rosa Montero, em seu livro “Paixões: amores e desamores que mudaram a história”, faz uma interessante narrativa biográfica do Beatle John Lennon de quem diz que aos 10 anos de idade “fazia coisas estranhas como olhar-se fixamente no espelho durante uma hora até seu rosto se decompor em imagens alucinantes”.
Penso que aquilo que Rosa Montero chamou de imagens alucinantes não era algo muito bom de se ver. Acredito que depois de uma hora ou mais se olhando no espelho o criativo beatle via seu rosto se alargar, suas feições ficarem grotescas, seus olhos desproporcionais, os limites de sua boca esticarem-se mostrandos os dentes e o cume de sua cabeça expandir-se verticalmente sem limites.
O resultado de olhar intensamente para nós mesmos não poderia ser outro se não a contemplação de nossa própria monstruosidade. Olhar demais pra si mesmo e esquecer o outro, é o primeiro passo para se tornar bizarro, protagonista de males sem conta e vítima do próprio veneno.
Li recentemente em algum lugar que o espelho foi inventado durante a dinastia inglesa dos Tudors que teve em Henrique VII (1485-1509) o seu fundador. Então pensei: quais foram as consequências práticas da invenção do espelho para a humanidade?
Até a invenção dos espelhos a única forma de contemplar a autoimagem era usando metais polidos e recorrendo à superfície dos lagos como fez o belo narciso.
Os metais polidos só conseguiam retratar as pessoas de forma não nítida, manchada, e na superfície das águas as iamgens se distorciam com facilidade ao simples mudar do vento.
Entretanto, “nos deram espelhos” e o que vimos, completa Renato Russo, “um mundo doente”. Os espelhos nos fizeram ver um mundo doente, mas por quê? Porque vimos neles a nós mesmos e nós estávamos doentes; a doença do mundo é a nossa própria doença!
A principal consequência da invenção do espelho foi que ele nos fez ter certeza daquilo de que já desconfiávamos. A descoberta do espelho encerrou um longo ciclo de separação entre nós e a imagem de nós mesmos, proporcionou-nos a nossa mais íntima descoberta e aperfeiçoou dois dos sentimentos mais destruidores em nós: a autocomiseração e a vaidade.
Ao contemplar os espelhos, os que eram belos e que o sabiam pelos olhares e palavras alheias agora certificaram-se das suas virtudes estéticas e perderam-se na vaidade decorrente da beleza. É a tirania do belo! são os orgulhos aflorados, é o olhar de desdém para quem não é belo como eu!
Por outro lado, os feios se descobriram feios. A autocomiseração fechou a alma de alguns na amargura, jorraram das bocas blasfêmias contras os céus (que fazem uns tão belos e outros tão horrendos), as vendas de cosméticos dispararam, espectros sinistros passaram a habitar por trás das grandes colunas no interior dos templos: é o nascimento do corcunda de Notredame que ama a beleza que não possui.
“Penso, logo existo?” Não! “Me vejo, logo existo”. O mundo contemporâneo é o mundo do espelho, é o mundo ensimesmado, é o mundo da autocontemplação, das academias, dos centros de beleza.
A destruição do meio-ambiente, a escalada nuclear, a fome nos bolsões de pobreza, a exclusão no mundo do capitalismo informacional, a violência nas favelas do Brasil e a corrupção no âmbito político são só imagens de nós mesmos destorcidas.
No que diz respeito ao vislumbre de aberrações resultantes de imagens destorcidas, o nosso mundo e o de John Lennon são um só. A diferença é que o genial Lennon fazia isso aos 10 anos de idade, quando ainda era criança, enquanto nós, mesmo nos julgando adultos, continuamos agindo como meninos egocêntricos, mergulhando profundo em nós mesmos e esquecendo dos demais.

André Pessoa

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