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sábado, 7 de agosto de 2010

QUARTO ESCURO



QUARTO ESCURO

Quando apaguei a lâmpada um súbito breu desceu sobre toda a extensão do quarto. Com as mãos sob a cabeça usadas como travesseiro eu olhava para o teto que não via.
No teto, que eu continuava não vendo, mas pressentindo, uma mancha branca com os limites pouco definidos era a única marca da fluorescente há pouco apagada. As trevas, por incrível que isso possa parecer, emitiam uma luz branca da qual falou Saramago (ou seria uma névoa?).
As caixas de livros no canto da parede pareciam montanhas sobre as quais a noite caíra repentinamente ao entardecer; eram apenas como silhuetas escuras ao longe. Nesse ponto, a densa negritude do quarto foi criando vida, se mexendo, se bulindo ao meu redor.
O ar parado da clausura assobiava nos meus ouvidos e do lado do espelho da cama, cuja existência eu conhecia e agora também intuía, a névoa branca que brotava da escuridão continuava a subir, a insinuar-se vividamente eclodindo do local onde possivelmente a parede se encontrava com o piso.
Ao meu lado senti a presença ofensiva de um móvel próximo da cama cujas roupas que repousavam sobre ele exalavam um longínquo cheiro de sabão em pó. De vez em quando, umas rajadas de ar frio que pareciam vir do nada eriçavam os pelos do meu corpo e então eu sentia que estava vivo, mesmo ali nas trevas!
Passados alguns minutos a visão comum me foi paulatinamente devolvida, embora a lâmpada continuasse puro ébano, e as linhas que dividiam as quatro paredes foram se deixando ver como virgem que se desnuda perante o primeiro amor.
Um cabide com uma camisa de botão nele pendurada foi um dos primeiros a mostrar-se, depois veio à tábua de passar e por último a porta marrom escuro. As portas sempre aparecem por último, quando aparecem.
Lentamente um mundo foi sendo substituído por outro e as imagens informes do primeiro deram lugar aos contornos bem definidos do segundo. Materializou-se então diante de mim uma nova realidade, que embora perto, antes eu não conseguia ver.
Das trevas foi brotando aos poucos uma imensa claridade. Absorto e vagando sem rumo nas veredas sinuosas dos meus pensamentos, conclui, num momento de revelação, que também podia enxergar no escuro. “Por mais escura que sejam as trevas nós sempre nos acostumamos com ela”, disse a voz que falava em meu interior. O Deus Intrapsíquico do qual falou Jung.
Aliás, depois de um tempo submersos na noite escura nos fundimos com a escuridão e então nos tornamos um com ela. Nós e as trevas, as trevas e nós. Só então podemos ver!

André Pessoa



3 comentários:

  1. Essa é uma narração que imagino seja por um momento a de muitas pessoas, momentos de escuridão e solidão...
    Acredito que todo momento é necessário os ruins e os bons. Escuridão/trevas são palavras que não gosto muito, lembra sempre algo ruim, um filme de terror que não me deixou dormir, ficar no quarto escuro pra dormir é a pior coisa que podem fazer a uma criança.
    Na cultura, nas artes e na ficção, as trevas são consideradas energia maligna, ou o domínio de onde o mal vem.
    Hoje um pouco mais madura sei que mesmo da escuridão/trevas podemos ver/ser a luz...
    Com relação a se acostumar com o que é ruim, nem pensar... Enquanto tiver fôlego lutarei, por que como diz a palavra de Deus em Neemias 8:10 “A alegria do Senhor é a vossa força”
    Quando li a frase abaixo lembrei-me que muitas vezes não enxergamos uma nova perspectiva, mesmo que ela esteja perto. Assim é a vida, cheia de mistérios, incontrolável mas simplesmente espetacular.
    “Materializou-se então diante de mim uma nova realidade, que embora perto, antes eu não conseguia ver.”
    Achei pertinente deixar uma frase que gosto muito, é um trecho da musica Is’ my life de Bom Jovi . “ I just want to live while I'm alive ”
    Ana

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  2. A escuridão de cara assusta mesmo.
    Nossos olhos ainda não acostumados demoram a captar, que é a desconstrução de todas as cores,formas..que guardamos ao longo de nosso percurso.
    Percebendo isso,fica muito mais fácil identificar
    o que conhecemos mas,com a nova roupagem,quando fica escuro.
    É aí que a gente se descobre um pouco mais,entende que fazemos parte dessa escuridão(também temos novas formas,sabores e etc..)e por fim, concluímos que ela nem é assombrosa..a não ser que vc seja..
    rsrsrs ;D brincadeira

    Achei muito boa essa sua postagem =)
    (não larga esse blog!)

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  3. Vejo as palavras comuns vestidas com roupas domingueiras. Muito além das evidentes dicotomias (nas quais eu não acredito) entre treva e escuridão, bem e mal. Vejo a descrição de uma insônia tomar corpo de poética narrativa ficcional. E gosto disso! Não sei explicar o "além" que vejo aqui, nem acho que é preciso. Tocou em mim, me fez sentir...em vários sentidos e significados, para muitos (os tais "normais")sem sentido. Mas como você mesmo diz, não faz sentido fazer sentido.

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